Ao longo dos últimos anos, agentes espiões russos atuaram no Brasil fingindo ser cidadãos brasileiros. Uma operação da Polícia Federal, iniciado há três anos, investigou os mecanismos do esquema da “fábrica de espiões” no país. Os detalhes do caso foram revelados nesta quarta-feira (21) em reportagem do jornal americano The New York Times.
A chamada “Operação Leste” que mirou os agentes infiltrados do Kremlin foi conduzida pela mesma unidade da PF que também investigou os atos e envolvidos na tentativa de golpe de Estado após as eleições de 2022.
O esquema envolvia uma ação de longo prazo para obter e consolidar novas identidades brasileiras – e os benefícios de uma passaporte do Brasil –, apagando os passados russos dos espiões.
O objetivo maior não seria diretamente espionar o Brasil, mas assumir a identidade de um cidadão brasileiro. Isso porque o passaporte brasileiro é um dos mais aceitos do mundo, com permissões para viagens sem visto em vários países. Outra vantagem para os espiões é o fator multiétnico brasileiro, que contribui para atenuar suspeitas.
Por meio de disfarces, os agentes russos poderiam ir para outros países, como Estados Unidos e nações do continente europeu e do Oriente Médio. Em prol de autenticidade, os profissionais russos abriram empresas no país e também assumiram relacionamentos amorosos com pessoas brasileiras.
Um a um, os espiões passaram a ser identificados pela contra inteligência federal nos últimos três anos, de forma silenciosa e metódica. O padrão usado pelos profissionais russos, com documentos falsos, foi o ponto de partida.
O caso inicial que acendeu o sinal de alerta das autoridades envolveu um comunicado da CIA – a Agência Central de Inteligência dos Estados Unidos –, em abril de 2022, meses após a invasão das tropas russas à Ucrânia.
A instituição norte-americana enviou mensagem à PF sobre a identificação de um agente disfarçado do serviço de inteligência militar da Rússia. Ele havia se inscrito para concorrer a um estágio no Tribunal Penal Internacional, na Holanda, no momento em que a instituição começou a investigar crimes de guerra russos na Ucrânia.
O homem identificado viajava usando um passaporte brasileiro em nome de Victor Muller Ferreira. O seu nome verdadeiro, segundo a CIA, era Sergey Cherkasov. A entrada dele na Holanda foi negada e ele retornou em um avião para São Paulo.
Sem provas, a PF não pode atuar para prendê-lo no aeroporto, mas o monitorou ao longo de dias. Os policiais conseguiram um mandado e o prenderam pela acusação de uso de documentos falsos.
Além do passaporte, Sergey Cherkasov tinha título de eleitor e até um certificado comprovando que havia cumprido o serviço militar obrigatório. A certidão de nascimento, no entanto, levantou suspeitas.
A PF identificou que Victor Müller Ferreira nunca existiu, mesmo com uma certidão de nascimento autêntica. Pelo documento, ele havia nascido no Rio de Janeiro em 1989, filho de uma mãe brasileira real que faleceu quatro anos depois.
Após localizar a família, a PF descobriu que a mulher nunca teve filhos e ninguém foi encontrado com o nome atribuído ao pai.
A partir daí, as investigações passaram a buscar “fantasmas” com passados e documentos inconsistentes semelhantes ao do russo Sergey Cherkasov. Certidões, passaportes e carteiras de motoristas e números de CPFs foram alvo de análises.
Outro caso identificado e investigado profundamente foi o de Artem Shmyrev, que usou o falso nome Gerhard Daniel Campos Wittich, um suposto cidadão brasileiro de 34 anos, proprietário de uma empresa de impressão 3D, no Rio de Janeiro.
Ele é casado com outra espiã russa, Irina Shmyreva, que esteve lotada na Grécia e depois exposta pelas autoridades gregas. Mensagens trocadas entre os dois ajudaram as investigações brasileiras. No final de 2022, no entanto, ele deixou o país antes que a PF o prendesse.
O russo viajou para a Malásia e, apesar de ter uma passagem de volta, nunca retornou ao Brasil. Ele deixou diversos dispositivos eletrônicos que continham dados pessoais, como mensagens de texto para sua esposa russa, além de US$ 12 mil (cerca de R$ 70 mil) em dinheiro em um cofre.
Neste processo, ao menos nove agentes russos foram identificados. Ao menos dois foram presos e outros deixaram o Brasil – mas tiveram seus disfarces expostos.
Apesar de manter relações amigáveis e parcerias comerciais – até mesmo após o ataque russo à Ucrânia – as autoridades brasileiras teriam avaliado os casos identificados como uma traição e decidiram agir.
Sem conseguir prender a maioria dos agentes russos, que escaparam e deixaram o país antes de serem detidos, os investigadores decidiram acionar a Interpol e expor os espiões.